Do fundo do quintal eu sabia
do mundo. O rádio de bateria informava. Havia guerra. Mulheres tentavam
atravessar o oceano em aviões, outras nadando.
Concursos de miss. Cinco crianças gêmeas de uma só vez.
Assim, me chegava o mundo, me chegava o sol. Todas as manhãs, estava
comigo, no quintal. Eu não sabia se era o mesmo sol que iluminava os campos de
batalha, o sorriso das misses, as asas dos aviões e aquecia o mar.
A mãe falava de coisas que perturbavam meu mundo. A avó contava
histórias coloridas. O pai não falava nada, lia o jornal. Eu, os olhava tentando descobrir coisas que não me diziam.
Eram cheios de segredos. Faziam mistério e eu morria de curiosidade. O rádio,
de bateria contava tudo. Nos intervalos das novelas da Rádio Nacional, que
minha mãe costumava ouvir, um homem “falava para o mundo”. Então, eu sabia de
algumas coisas que as pessoas grandes escondiam.
A energia elétrica só
chegava à noite. O rádio de bateria, era um luxo. Minha mãe se orgulhava de ter um rádio que falava de dia. Nas
noites compridas sem ter o que fazer, ela contava as coisas que sabia. Eram poucas. Um dia ela nos disse:
ouvi no rádio, que um dia a gente não
vai ouvir apenas a voz, vai ver também as pessoas. Dizia que não acreditava,
achava impossível. Mas ficava feliz pensando no filho que estudava no
Recife. Quem sabe ele falaria de lá ?
Mas, “tem uma coisa”, dizia ela, triste, “ele não pode ver a gente”. Assim, não
valia a pena, eu pensava.
Brincando com terra, no
fundo do quintal, brincando, com água da cisterna, com latas vazias de doce de
goiaba, com bonecos feitos de casca de melancia e porquinhos de caroços de
mangas, eu pensava no mundo. Pensava no
mar, diziam que era grande, maior do que a cidade onde a
gente morava, maior do que o açude dos Brito,
de onde se bebia água e comia
peixe. Diziam que a água do mar era salgada. “E os peixes também”? Quando minha mãe tentava explicar, eu achava
que ela não sabia, pois o bacalhau, o único peixe que vinha de lá, era salgado.
Pensava muito, queria saber de tudo, mas as pessoas não
sabiam me dizer, ou não queriam. Tudo
era assunto de gente grande.
Lá, do quintal, eu imaginava o mundo. Os muros
não prendiam minha imaginação. Queria respostas. As perguntas estavam comigo.
Ganhei uma boneca. A madrinha
mandara de Caruaru. Diferente das que tivera até então. Tinha os lábios
pintados, as faces rosadas, vestido de renda. “É de celulóide”, disse minha
avó. Eu não sabia o que era celulóide, minha avó também não, nem me interessava
saber, estava interessada mesmo era na boneca que chegou numa caixa grande,
cor-de-rosa, embrulhada em papel de seda, amarrada com um grande laço vermelho.
Por muito tempo guardei papel e laço. Nunca havia visto coisa mais bonita. As
pessoas acharam linda minha boneca.
Cabelos loiros, olhos azuis e um sorriso parado. Era bonita, nada mais. Não
sabia de nada. Não me ouvia quando eu
falava, vivia a sorrir sem ver de quê. Eu também tinha, cabelos loiros, olhos azuis,
ria e chorava e prestava atenção em tudo e ainda apanhava quando fazia coisa
errada. A boneca nem fazia nada errado. Decididamente não gostava dela.
Meu pai viajava de vez em
quando. Seu caminho era longo. Demorava
muito quando ia. Minha mãe chorava. Eu não sabia por quê. Ele era muito sisudo,
calado e eu tinha medo dele. Mas, mesmo assim, eu desobedecia tudo quanto eram
ordens. Apanhava satisfeita. Obedecer
doía mais do que apanhar.
O rádio continuava a contar as coisas. Um dia,
falou da guerra. O povo temia. As mães temiam. “De quem era a guerra, o que era ela?” Minha
mãe tentava explicar. Falava de lutas, de revoluções, de mortes. Eu não
entendia nada mesmo. Guerra, eu pensava, era ter que ir para o colégio interna.
Lá, morria-se de saudade. A gente
chorava, as mães choravam. Mas a gente
voltava. Alguns soldados, não.
Hoje, sobreviventes destas lutas, temos histórias para contar. Temos raízes. Sobreviventes de nós mesmos cá
estamos fora daquele quintal que nos preservava da realidade e nos
permitia sonhar.
Meu Deus, como era chato
estudar. Não deixavam a gente saber o que queria. Tinha que ser o que um tal de
programa mandava. Eu nem sabia o que era, e não gostava dele, era
amigo da professora. Ouvia a vizinha dizer que o filho de dona fulana estudou
tanto que ficou doido. Eu achava que ele já era doido quando estudou tanto.
O mundo cresceu. Nele entrei cheia de perguntas.
Do meio do mundo sonhava com meu quintal. Um dia voltei, cheia de
respostas, sem mais poder sonhar. Carregava
o mundo comigo.