quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

DO QUINTAL PARA O MUNDO



               
    Do fundo do quintal eu sabia do mundo. O rádio de bateria informava. Havia guerra. Mulheres tentavam atravessar o oceano em aviões, outras nadando.  Concursos de miss. Cinco crianças gêmeas de uma só vez.
Assim, me chegava o mundo, me chegava o sol. Todas as manhãs, estava comigo, no quintal. Eu não sabia se era o mesmo sol que iluminava os campos de batalha, o sorriso das misses, as asas dos aviões e aquecia o mar.
A mãe falava de coisas que perturbavam meu mundo. A avó contava histórias coloridas. O pai não falava nada, lia o jornal. Eu, os olhava  tentando descobrir coisas que não me diziam. Eram cheios de segredos. Faziam mistério e eu morria de curiosidade. O rádio, de bateria contava tudo. Nos intervalos das novelas da Rádio Nacional, que minha mãe costumava ouvir, um homem “falava para o mundo”. Então, eu sabia de algumas coisas que as pessoas grandes escondiam.
         A energia elétrica só chegava à noite. O rádio de bateria, era um luxo. Minha mãe se orgulhava de ter um rádio que falava de dia.  Nas noites compridas sem ter o que fazer, ela contava as coisas que  sabia. Eram poucas. Um dia ela nos disse: ouvi  no rádio, que um dia a gente não vai ouvir apenas a voz, vai ver também as pessoas. Dizia que não acreditava, achava impossível. Mas ficava feliz pensando no filho que estudava no Recife.  Quem sabe ele falaria de lá ? Mas, “tem uma coisa”, dizia ela, triste, “ele não pode ver a gente”. Assim, não valia  a pena, eu pensava.
       Brincando com terra, no fundo do quintal, brincando, com água da cisterna, com latas vazias de doce de goiaba, com bonecos feitos de casca de melancia e porquinhos de caroços de mangas,  eu pensava no mundo. Pensava no mar,  diziam  que era grande, maior do que a cidade onde a gente morava, maior do que o açude dos Brito,  de onde se bebia água e comia  peixe. Diziam que a água do mar era salgada. “E os peixes também”?  Quando minha mãe tentava explicar, eu achava que ela não sabia, pois o bacalhau, o único peixe que vinha de lá,  era salgado. 
         Pensava muito,  queria saber de tudo, mas as pessoas não sabiam me dizer, ou não queriam.  Tudo era assunto de gente grande.
 Lá, do quintal, eu imaginava o mundo. Os muros não prendiam minha imaginação. Queria respostas. As perguntas estavam comigo.
 Ganhei uma boneca. A madrinha mandara de Caruaru. Diferente das que tivera até então. Tinha os lábios pintados, as faces rosadas, vestido de renda. “É de celulóide”, disse minha avó. Eu não sabia o que era celulóide, minha avó também não, nem me interessava saber, estava interessada mesmo era na boneca que chegou numa caixa grande, cor-de-rosa, embrulhada em papel de seda, amarrada com um grande laço vermelho. Por muito tempo guardei papel e laço. Nunca havia visto coisa mais bonita. As pessoas  acharam linda minha boneca. Cabelos loiros, olhos azuis e um sorriso parado. Era bonita, nada mais. Não sabia de nada. Não me ouvia   quando eu falava,  vivia a sorrir  sem ver de quê. Eu  também tinha, cabelos loiros, olhos azuis, ria e chorava e prestava atenção em tudo e ainda apanhava quando fazia coisa errada. A boneca nem fazia nada errado. Decididamente não gostava dela.
       Meu pai viajava de vez em quando.  Seu caminho era longo. Demorava muito quando ia. Minha mãe chorava. Eu não sabia por quê. Ele era muito sisudo, calado e eu tinha medo dele. Mas, mesmo assim, eu desobedecia tudo quanto eram ordens. Apanhava satisfeita.  Obedecer doía  mais do que apanhar.
        O rádio continuava a contar as coisas. Um dia, falou da guerra. O povo temia. As mães temiam.  “De quem era a guerra, o que era ela?” Minha mãe tentava explicar. Falava de lutas, de revoluções, de mortes. Eu não entendia nada mesmo. Guerra, eu pensava, era ter que ir para o colégio interna. Lá,  morria-se de saudade. A gente chorava, as  mães choravam. Mas a gente voltava. Alguns soldados, não. 
Hoje, sobreviventes destas lutas, temos histórias para contar.  Temos raízes. Sobreviventes de nós mesmos cá estamos fora daquele quintal que nos preservava da realidade e nos permitia  sonhar. 
       Meu Deus, como era chato estudar. Não deixavam a gente saber o que queria. Tinha que ser o que um tal de programa mandava.  Eu   nem sabia o que era, e não gostava dele, era amigo da professora. Ouvia a vizinha dizer que o filho de dona fulana estudou tanto que ficou doido. Eu achava que ele já era doido  quando estudou tanto.
         O mundo cresceu. Nele entrei cheia de perguntas.
Do meio do mundo sonhava com meu quintal. Um dia voltei, cheia de respostas,  sem mais poder sonhar. Carregava o mundo comigo.


SEM FUTURO


        

 
Quando jovens, vivemos por antecipação – é o vestido para a próxima festa, a viagem sonhada, projetos de vida os mais mirabolantes.    
O tempo passa e com ele as inconsequências da juventude, as crenças exacerbadas na felicidade, momentos em que o imaginário se apossa da consciência fazendo-nos acreditar num mundo que mal começa.
A velhice chega e dá o golpe de misericórdia, Carrasco cego executa sua missão. Tentamos recolher os restos mortais dos sonhos e dos desejos que se desfizeram com o tempo ou se desintegraram com as decepções.
A princípio o futuro é um presente dos sonhos que nos acena com o que desejamos realizar. Daí por diante, o passado será sempre presente.
Rolam e giram os ponteiros, não precisamos deles, eles passam sem nós. Perseguem, no entanto, nossos passos.
 Quando sentimos saudade, exumamos o passado. As emoções nele contidas nunca mudarão. Ameaçador, o futuro avança para se destruir na realidade do agora, se enterrar na angústia do passado, das esperanças, numa metamorfose da saudade. Como um refúgio corremos para trás, voltamos, não para sonhar mas para nos vermos dentro do sonho. Tentamos enfrentar a morte que vem chegando disfarçada de velhice. Então, sofremos de um medo terminal do futuro porque já não temos como construir saudades, apenas senti-las.

Num acesso de bom senso, resolvo viver o momento. Quero me livrar da síndrome do futuro. Encontro no agora, o porto seguro, a certeza o consolo de que viver o presente é uma fórmula que ajuda a esperar a morte. 

CICATRIZ

A noite vagarosa chega enquanto
Ventos de agosto cantam sem parar
Um réquiem de tristeza e o contracanto
De uma saudade a se denunciar

E nos acordes de tão triste canto
Olhei me olhaste e sem poder falar
Vi no teu rosto esquálido o espanto
De um triste adeus gravado em teu olhar

E assim os ventos gélidos de agosto
Deixaram estranhas marcas no meu rosto
E na minha alma funda cicatriz

Agora enfrento a dor sempre sorrindo
Enquanto sofro por estar fingindo
Os outros pensam que eu sou feliz